11 de dezembro de 2024

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Educação e pesquisa: Ditadura criou Estatuto do Índio para afastar acusações de genocídio

A principal lei de proteção dos povos indígenas do Brasil está prestes a completar 50 anos. Trata-se do Estatuto do Índio (Lei 6.001), que determina, entre outros pontos, que os indígenas têm direito à demarcação e à posse das terras que ocupam, devem ter seus valores culturais respeitados e precisam ser protegidos pelo Estado.

Não foi por benevolência, no entanto, que em 19 de dezembro de 1973 o presidente Emílio Garrastazu Médici assinou o Estatuto do Índio — em vigor até hoje.

Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que a ditadura militar se empenhou na criação do estatuto porque o Brasil vinha sendo acusado no exterior de genocídio dos povos originários.

No entender dos militares, a nova lei neutralizaria as denúncias, que eram reiteradamente feitas por jornais, políticos e organismos estrangeiros.

Entre 1970 e 1973, período em que o projeto do Estatuto do Índio permaneceu em discussão no Congresso Nacional, senadores tanto da Arena (partido de sustentação da ditadura) quanto do MDB (partido de oposição consentida) refutaram diversas vezes as acusações de genocídio.

O senador Vasconcelos Torres (Arena-RJ) discursou:

— Somos cinicamente acusados de genocídio, numa tremenda campanha de imprensa contra o Brasil de graves repercussões internacionais.

Para o senador Adalberto Sena (MDB-AC), não haveria problema se os jornais estrangeiros se limitassem a citar as arbitrariedades políticas do regime militar, como a cassação de mandatos:

— Nada teríamos a dizer disso, porque realmente constitui uma anormalidade. Contudo, eles têm deixado de lado esses fatos para se apegarem a mentiras. Uma dessas balelas é a de que tratamos mal e chegamos mesmo a matar índios. Todos sabemos que não é verdade. Não existe nenhuma ação governamental no intuito de eliminar aqueles que foram os primeiros habitantes da nossa terra.

O senador Mem de Sá (Arena-RS) ficou furioso ao saber que partiram acusações até do Senado dos Estados Unidos, mais especificamente do gabinete de Edward Kennedy, irmão do falecido presidente John Kennedy:

— É de pasmar que um senador que leva o nome Kennedy garanta com uma tranquilidade grotesca que “o governo brasileiro admitiu que o Serviço de Proteção ao Índio estava assassinando índios sistematicamente”. Esse bravo congressista, pelo que se depreende de sua verbiagem, reserva para governos sul-americanos a virilidade das agressões que não se anima a dirigir aos governantes de seu próprio país nem muito menos aos da Rússia, da China ou de Cuba. Se é contra o Brasil, vale tudo. Qualquer asseveração fantasiosa passa a ser dogma no discurso do senador de Massachusetts.

O senador Eurico Rezende (Arena-ES) contou aos colegas que sentiu na pele os efeitos dessa “campanha tremendamente mentirosa” quando esteve em Dakar, capital do Senegal, para proferir uma palestra numa universidade:

— Fui recepcionado com imensa vaia. Alguns estudantes mais exaltados não queriam que eu fizesse a conferência. Fiquei perplexo. O vice-reitor me disse que os jornais da Europa tinham intoxicado a opinião pública do Senegal noticiando que no Brasil se praticava o genocídio, isto é, que o governo estimulava o extermínio das tribos. Com muita dificuldade, falei alguma coisa. Não pude terminar a conferência. Quase toda a imprensa alemã e parte da imprensa francesa cometem uma injustiça para com o Brasil, exibindo uma mentira que contaminou a África inteira.

O senador Benedito Ferreira (Arena-GO) apontou o jornal francês Le Monde como um dos mais engajados:

— O Le Monde, comprometido com o esquerdismo, muito se prestou à terrível campanha provavelmente por haver a afinidade da raça [entre Brasil e França], por existirem ligações históricas ou por lá terem montado o tristemente famoso “comitê” de tentativa de desmoralizar e comunizar o Brasil.

De acordo com o senador José Lindoso (Arena-AM), as acusações de genocídio não condiziam com a índole do brasileiro:

— O índio representa aquele que foi o dono primeiro da terra, com o qual estamos dialogando na construção de uma civilização, esta civilização brasileira representada por uma democracia racial, sem abismos entre grupos de raças ou de qualquer outra espécie, porque as pontes são as da solidariedade, do diálogo e da fraternidade cristã.

Na defesa do governo, o senador Luiz Cavalcante (Arena-AL) foi ainda mais longe:

— Médici é hoje nome que está até na maloca dos índios. E não somente maloca. Também está nos corações dos que nela habitam.

De acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade, de 2014, pelo menos 8.350 indígenas morreram comprovadamente em decorrência de violências diretas e omissões do governo brasileiro entre 1946 e 1988, período que inclui a ditadura militar (1964-1985).

O documento avalia que o número real de mortos deve ser “exponencialmente maior”, mas é impossível de ser determinado porque muitos casos não foram documentados.

A virada dos anos 1960 para os anos 1970 foi caracterizada pelo incentivo da ditadura à ocupação da Amazônia. Os generais no poder acreditavam que essa era uma região despovoada e, como tal, vulnerável a infiltrações “subversivas” e invasões estrangeiras.

Com o intuito de garantir a segurança nacional e, ao mesmo tempo, construir o “Brasil grande”, o governo militar investiu pesado na abertura de espaços na floresta para nela assentar pequenos colonos oriundos de outros pontos do país, permitir a instalação de grandes empreendimentos agropecuários, liberar a extração de madeiras e minérios e construir rodovias e usinas hidrelétricas.

Em 1970, por exemplo, o general Médici lançou o Programa de Integração Nacional (PIN), que incluiu a abertura da rodovia Transamazônica, entre o Amazonas e a Paraíba, e a criação de vilas e comunidades rurais às suas margens. Os slogans do PIN foram “integrar para não entregar” e “terra sem homens para homens sem terra”.

A Amazônia, contudo, não era uma terra sem homens. Os grupos indígenas que viviam nos locais das obras tiveram que sair. Alguns deles jamais haviam tido contato com os brancos.

Cabia à Fundação Nacional do Índio (Funai), comandada por militares, fazer o primeiro contato e tentar convencê-los a se mudarem. Os indígenas que aceitavam acabavam por vezes sendo transferidos para lugares inadequados, sem condições de subsistência ou perto de grupos inimigos.

Os que não aceitavam a mudança por bem, por sua vez, saíam por mal. Os embates entre os indígenas e as forças de segurança pública ou os vigias das obras eram corriqueiros e resultavam em mortes e até massacres. As flechas não tinham como fazer frente às balas.

Embora os problemas tenham sido mais frequentes no Norte, os indígenas foram considerados obstáculos a projetos da ditadura em todas as regiões do Brasil.

O jornalista Rubens Valente, repórter da Agência Pública e autor do livro Os Fuzis e as Flechas: a história de sangue e resistência indígenas na ditadura (editora Companhia das Letras), explica por que os generais no poder tinham tanta aversão à palavra “genocídio”:

— Após a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto, a ONU enquadrou o genocídio como crime contra o direito internacional, e o Brasil ratificou a convenção. Por isso, se houvesse alguma acusação formal contra o país, o governo seria julgado pelos tribunais internacionais e poderia ser condenado. Era tudo que a ditadura não queria. A palavra “genocídio” era combatida de todas as formas.

A Comissão Nacional da Verdade usa o termo “genocídio” em alguns trechos do relatório, mas adota com mais frequência a expressão “graves violações de direitos humanos”.

— Trata-se de uma discussão que não é simples, porque envolve a conceituação jurídica de “genocídio” — continua Valente. — De qualquer forma, os povos indígenas que foram submetidos a tantas violações e sofreram perdas monumentais de vidas humanas sentem que o que sofreram foi, sim, um genocídio.

Mais tarde, em 1980, o Brasil foi condenado pela quarta sessão do Tribunal Russell, em Roterdã, por violar direitos humanos dos povos Waimiri Atroari, Yanomami, Nambikwara e Kaingang de Manguerinha. 

Os documentos históricos do Arquivo do Senado indicam que os parlamentares conheciam a realidade.

Em 1968, antes de o governo propor a criação do Estatuto do Índio, o senador Aurélio Vianna (MDB-Guanabara) leu para os colegas uma reportagem do Correio da Manhã sobre o chamado Relatório Figueiredo, um extenso documento resultante de uma investigação sobre os abusos cometidos pelo Estado brasileiro contra os indígenas. Foi esse escândalo que deflagrou as críticas internacionais.

O jornal avaliou que as violências descritas no Relatório Figueiredo “só encontram paralelo na ação de extermínio em massa praticada pelo nazismo”. O Correio da Manhã seria fechado em 1974, sufocado financeiramente pela ditadura.

— Causou-me profunda revolta. A impressão que se tem é a de que o nosso país, pela irresponsabilidade de certos dos seus dirigentes, transformou-se numa segunda Rodésia — discursou Vianna, citando a matança no país africano em guerra civil. — Se o mundo está revoltado pela execução daqueles grupos humanos que vêm lutando pelo direito de ser cidadãos da própria pátria, o que não dirá do genocídio que se vem praticando no Brasil por autoridades governamentais? Muitas vezes nos comovemos quando um africano é assassinado barbaramente e até achamos graça quando se fala no assassinato de um índio.

O senador Clodomir Millet (Arena-MA) também ficou chocado com a reportagem:

— É costume em nosso país usar-se mal a palavra. Chama-se de selvagens, entre nós, essas pobres vítimas indefesas e inermes [desarmadas] da fúria sanguinária e selvagem de homens ditos civilizados.

Em 1973, pedindo a aprovação do Estatuto do Índio, o senador fluminense Vasconcelos Torres mencionou o marechal Cândido Rondon, sertanista que primeiro dirigiu o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e se imortalizou pela defesa das populações indígenas na primeira metade do século 20, e afirmou:

— Os êmulos [antagonistas] de Rondon no SPI se deixaram embotar [cegar] na preservação dos seus ideais humanísticos a ponto de ter sido aquela sigla traduzida, na linguagem candente do ministro [do Interior] Albuquerque Lima, como “Serviço de Prostituição dos Índios”.

O senador Nelson Carneiro (MDB-Guanabara) apresentou um requerimento para que a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado se manifestasse sobre a veracidade da denúncia noticiada pelo Jornal do Brasil de que em Resplendor (MG) existia um presídio ou reformatório exclusivo para indígenas da etnia Krenak.

A ideia original de Carneiro era pedir uma comissão parlamentar de inquérito sobre o caso, mas mudou de estratégia por saber que a oposição não tinha força suficiente para criar CPIs que não fossem do interesse da ditadura.

Numa crítica velada ao regime militar, o senador do MDB argumentou:

— A constatação do que realmente ocorre [em Resplendor] poderá sugerir à douta Comissão de Constituição e Justiça [a elaboração de uma] proposição que discipline a recuperação dos índios delinquentes e certamente ajudará o governo em seu empenho de contraditar os que, no estrangeiro, acusam o Brasil de sistemática política de destruição dos remanescentes indígenas no país.

Na CCJ, a análise inicial coube ao senador governista Osires Teixeira (Arena-GO), que pediu e conseguiu o arquivamento do pedido de Carneiro. Teixeira respondeu:

— A Funai não mantém colônia penal em área alguma sob sua jurisdição, não sendo verdadeiras as informações da reportagem. O que a Funai mantém em Resplendor é uma colônia para reeducação de índios desajustados do seu ambiente social. O recolhimento só se faz a pedido da própria comunidade, cujos tuxauas [chefes indígenas] também são consultados pela Funai sobre o retorno do membro faltoso ao seio tribal quando esta já o considera recuperado. Na colônia se ministram cursos de tratorista, capataz rural, oleiro, pedreiro, carpinteiro e horticultor, com o objetivo de ensinar algo de útil que posteriormente será transmitido à própria comunidade.

A recente Comissão Nacional da Verdade concluiu que o que havia em Resplendor era, sim, uma cadeia indígena e que nela ocorreram “trabalho forçado”, “desaparecimento de prisioneiros” e até “morte por tortura no tronco”.

O senador Danton Jobim (MDB-Guanabara) avaliou que a situação das populações originárias era mesmo dramática, mas seria exagero qualificá-la de “genocídio”:

— Tem havido fatos lamentáveis, deprimentes e ignominiosos [vergonhosos] envolvendo silvícolas nas margens da Transamazônica, cuja autenticidade não comporta desmentidos, pois o próprio governo os denunciou. Tem sido difícil às autoridades deter a cobiça dos chamados brancos ou civilizados que se situam perto ou dentro de terras indígenas. Incidentes se sucedem em episódios crudelíssimos, cenas hediondas. No entanto, o suposto genocídio não se pode caracterizar como tal, pois não é fruto de nenhuma política oficial deliberada, mas episódios ligados à luta de posseiros ou grileiros com índios que defendiam seus territórios.

Para o senador Ruy Santos (Arena-BA), o problema todo era imunológico:

— Vou dar uma informação a respeito do genocídio de índios, que, como médico, sempre acompanhei. Há uma razão muito simples para a mortandade: quando entram em contato com a civilização, não estão com a imunidade natural que nós, que vivemos aqui, temos. Se formos apurar os dados estatísticos, encontraremos cifras altas de mortalidade por sarampo, por exemplo.

As doenças, de fato, pesaram. A Comissão Nacional da Verdade afirma, porém, que em certos casos as doenças foram introduzidas em aldeias propositalmente e em outras situações o poder público simplesmente se omitiu e deixou de oferecer vacinas antes da chegada da “civilização” às terras indígenas.

O relatório oficial aponta, entre outras cifras, a morte de 90% do povo Suyá Ocidental, 65% do Krenakore, 60% do Parakanã e 35% do Araweté. Os integrantes da etnia Parakanã foram compulsoriamente transferidos de lugar pela Funai cinco vezes entre 1971 e 1977.

Só as obras da rodovia Transamazônica, segundo a ditadura, cortaram terras habitadas por 29 etnias indígenas diferentes, das quais 11 jamais haviam tido contato com os brancos — chamadas na época de tribos “arredias” ou “bravas”.  

Além de criar o Estatuto do Índio, a ditadura militar adotou várias outras táticas com o intuito de desacreditar as acusações de genocídio. A primeira delas, em 1967, foi fechar o SPI e criar a Funai em seu lugar.

Depois, submeteu o tema a uma comissão mista formada por integrantes dos Ministérios do Interior e das Relações Exteriores e também ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, ligado ao Ministério da Justiça. Nenhuma das duas frentes concordou com a tese de genocídio indígena. O Ministério das Relações Exteriores mandou as embaixadas brasileiras darem publicidade ao parecer da comissão mista pelo mundo afora.

Em 1970, a ditadura permitiu que a Cruz Vermelha Internacional fizesse uma averiguação da situação dos indígenas. A missão, contudo, trabalhou vigiada o tempo todo por agentes do governo. No relatório divulgado em Genebra, a entidade afirmou não ter visto genocídio no Brasil, mas listou tantas recomendações ao governo que se pôde inferir do documento que o país negava, sim, os direitos mais básicos aos povos originários.

Em 1972, os militares conseguiram fazer de Brasília a sede do Congresso Indigenista Interamericano, que teve representantes de diversos países do continente e de organismos internacionais. Segundo o senador goiano Osires Teixeira, o evento foi um sucesso:

— Segundo a Declaração de Brasília, aprovada unanimemente, o Brasil passou a fazer parte da relação de países que mais benefícios levam às populações indígenas. O relatório afirma que o Estatuto do Índio, em vias de se transformar em lei, será a base legal e efetiva para a defesa e o desenvolvimento dos grupos indígenas e poderá oferecer sugestão aos demais países do continente.

Em 1973, a ditadura aproveitou a assembleia-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, para distribuir aos países membros um relatório sobre a sua política indigenista traduzido para o inglês.

Na mesma época, os militares levaram o tema a uma conferência da União Interparlamentar (UIP) em Haia. Um dos participantes foi o senador Ruy Carneiro (MDB-PB), que depois contou aos colegas sobre uma tentativa de hostilidade contra a delegação brasileira encabeçada por “um grupo de hippies” em razão da “propalada matança de índios em nosso país”.

Apesar do incidente, ele disse, o Brasil se saiu bem na Holanda:

— O grande salão de festas do Kurhaus, o maior hotel de Haia [onde a delegação brasileira se hospedou], foi revestido de fotografias imensas do Brasil. Apresentavam, por exemplo, cenas referentes aos índios, as quais espantaram os jornalistas quando da entrevista coletiva, porque eram fotografias em que se via o avião da FAB no meio da selva cercado por índios que o recebiam amistosa e calorosamente; outras em que médicos com estetoscópio examinavam índios, e enfermeiras aplicavam injeções; outras, ainda, em que os índios, formados em roda, dançavam homenageando caravanas de brancos.

O senador concluiu:

— Então pudemos perguntar, apontando aos jornalistas holandeses, se um ditador ou um país em ditadura, que tortura presos, trata os índios da maneira como aquelas fotos mostravam. O que a delegação brasileira fez foi um serviço inestimável de promoção do Brasil e do restabelecimento da verdade a respeito do nosso país.

O Estatuto do Índio foi criado tal qual o general Médici desejava. Do projeto aprovado pela Câmara e pelo Senado, o presidente vetou apenas o artigo que permitia às entidades religiosas atuar nas comunidades indígenas, tal qual haviam feito os catequizadores católicos durante todo o período colonial e imperial.

O temor da ditadura era que entidades desse tipo, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), criado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em 1972, ajudassem os indígenas a formar um movimento social que pudesse fazer pressão sobre o governo. Para os generais, qualquer grupo organizado tinha potencial “subversivo”.

Apesar de listar uma série de direitos (com frequência desrespeitados), o Estatuto do Índio contém um dispositivo altamente prejudicial aos povos indígenas. É o que estabelece que o Estado buscará “integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional”. Isto é, fazê-los “evoluir”, passando de indígenas (tutelados pela Funai, portanto) a cidadãos comuns (livres da tutela estatal).

Essa política, chamada de assimilacionista, era apoiada por vários parlamentares. O senador Danton Jobim foi um deles:

— O conflito entre o desenvolvimento das regiões mais interiorizadas do país e as comunidades indígenas isoladas é previsível sempre e mesmo inevitável. O papel da Funai não é propriamente evitar o fim do índio como tal, não é fazê-lo parar num determinado momento da evolução histórica do país. Sua grande missão é tornar o menos penosa possível a integração do silvícola na comunidade nacional, pois essa integração se fará fatalmente.

Jobim prosseguiu:

— Meia dúzia de pessoas que possuem bons títulos universitários quer que o Brasil conserve seus índios numa espécie de zoológico, exatamente como os encontram os portugueses ao chegar aqui Cabral, e dessa forma condenar essa minoria a não progredir. É muito fácil e bonito afirmar, quando se nasce na Noruega ou na Holanda, que o traçado da Transamazônica deveria ter sido alterado para não perturbar a vida de alguns milhares de índios. Mas o Brasil precisa ocupar rapidamente o território nacional e explorá-lo não apenas a seu favor, mas em benefício de toda a humanidade.

De acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade, a ditadura desejava a rápida integração deles à “comunhão nacional” porque assim deixariam de ser considerados legalmente indígenas e perderiam o direito à terra garantido pelo estatuto, facilitando o desenvolvimento nacional tão almejado pelos militares.

Em termos legais, a política assimilacionista caiu em 1988, com a promulgação da atual Constituição. Pela primeira vez na história do Brasil, a Lei Magna foi elaborada com a contribuição dos povos indígenas. O Estatuto do Índio continua em vigor, mas os seus trechos que contrariam a Constituição caducaram.

De acordo com o jornalista Rubens Valente, a velha política de “desindianização” permanece na prática:

— Uma coisa que não mudou até hoje é este nosso sentimento de superioridade racial que leva à tentação autoritária de determinar ao outro, sem empatia, como ele deve existir. É um sentimento que está presente no poder público, nas empresas, em parte da imprensa, em todos os setores da sociedade. Como queremos que o outro deixe de existir da forma como ele é, no fim das contas esse é um comportamento genocida.

Os indígenas do Brasil assistiram neste ano a dois acontecimentos inéditos. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva criou o Ministério dos Povos Indígenas e o confiou à educadora e militante indígena Sonia Guajajara. Ao mesmo tempo, a Funai, depois de mais de 50 anos de existência, passou a ser conduzida por uma indígena, a advogada e militante Joenia Waipichana.

Neste momento, o Ministério dos Povos Indígenas está elaborando o anteprojeto de uma lei que enfim substituirá o cinquentenário Estatuto do Índio, adaptada à nova realidade. Ao contrário do que ocorreu com a lei de 1973, desta vez os próprios indígenas — incluindo juristas — estão encarregados da elaboração do texto, que em breve será submetido ao Congresso Nacional.

O coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Maurício Terena, é um dos integrantes do grupo de trabalho criado pelo ministério. Ele afirma:

— O nosso trabalho não se esgotará quando concluirmos a minuta. Teremos que continuar resistindo e lutando. Estaremos vigilantes para que o projeto, uma vez enviado para o Congresso Nacional, não sofra distorções e seja aprovado. Existem interesses econômicos e financeiros fortes que agem dentro e fora da política e das instituições para que os povos indígenas não exerçam seus direitos e permaneçam subalternos, para que ideologias coloniais e atrasadas continuem vigorando.

De acordo com ele, além do fim da classificação dos indígenas em integrados e não integrados, a nova lei precisará solucionar a conflituosa questão da terra. Em 1973, o Estatuto do Índio deu prazo de cinco anos para que o governo demarcasse todas as terras indígenas do país. Em 1988, a Constituição novamente estabeleceu cinco anos. Nenhuma das duas determinações foi cumprida. Maurício Terena diz:

— No atual contexto de mudanças climáticas, a demarcação de terras é um assunto que afeta toda a sociedade, e não apenas os povos indígenas. Neste país em que o desmatamento é o principal responsável pelas emissões de gases do efeito estufa, a demarcação de terras representa, comprovadamente, a conservação das matas e a consequente redução das emissões.

Ele conclui:

— A sociedade precisa conhecer melhor os povos indígenas e superar os velhos estereótipos que ainda dominam o imaginário nacional. Graças às ações afirmativas e à entrada dos indígenas na universidade, um conhecimento novo começou a ser produzido e está fortalecendo a luta. É impossível enxergar e compreender a realidade política, econômica e social do Brasil sem conhecer os 500 anos de luta e violência que envolvem os povos indígenas.

Fonte: Agência Senado

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