Prótese desenvolvida no Brasil permite melhorar resultados de correção de má-formação do tórax
Roseli Andrion | Pesquisa para Inovação – Na rotina de atendimentos no Instituto do Coração (Incor) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), o cirurgião torácico Miguel Tedde costuma se deparar com casos de pacientes com uma doença rara, chamada pectus excavatum (peito escavado, em latim). A condição causa a compressão do coração e do pulmão, além de alterações psicológicas, e seu tratamento consiste na implantação de próteses metálicas moldadas por trás do osso esterno (também conhecido como “osso do peito”) para empurrá-lo para a frente. O dispositivo usado para essa finalidade, contudo, é importado e apresenta problemas, como o fato de ser feito de um material não biocompatível – o aço – e ter o risco de deslocamento.
“Operamos por 20 anos os pacientes com esse material importado e os resultados nem sempre eram adequados”, diz Tedde.
A fim de superar essas limitações do dispositivo, o pesquisador, em parceria com engenheiros da empresa Traumec, de Rio Claro, no interior de São Paulo, desenvolveu por meio de um projeto apoiado pela FAPESP uma nova versão totalmente nacional da prótese que apresenta diversas vantagens em relação à importada.
O dispositivo já foi implantado com sucesso em 50 pacientes diagnosticados com peito escavado, operados no Incor, e usado na primeira cirurgia minimamente invasiva de que se tem notícia de um paciente com uma condição clínica ainda mais rara: o pectus carinatum (conhecida popularmente como “peito de pombo”).
O material já foi registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e tem sido utilizado em cirurgias realizadas em outros hospitais no país.
“O cirurgião brasileiro agora dispõe do material mais completo do mundo para realizar o reparo minimamente invasivo da deformidade. Com essa prótese, a cirurgia tem menor risco de acidentes operatórios, não há deslocamento e os resultados anatômicos são melhores”, diz Tedde.
A prevalência de peito escavado no país é de 1,2% e estima-se que, a cada 200 nascimentos, um seja afetado pela condição. Apesar de existir em pacientes de ambos os sexos, os de sexo masculino são os que mais procuram tratamento. Tedde aponta que as mamas femininas podem disfarçar a deformidade. “Talvez por isso elas não busquem atendimento com frequência.”
A doença ocorre quando há alterações na cartilagem existente entre as costelas e o osso esterno. Como ela move o osso para dentro, pode haver compressão cardíaca e pulmonar, mas o mais grave são as alterações psicológicas nos pacientes. “Em geral, eles estão na fase de formação da personalidade”, pondera Tedde. “O homem tem esse comportamento de expor o tórax, o que causa vergonha quando ele tem a má-formação. Portanto, não tratar não é uma opção.”
Em alguns casos, a condição é percebida imediatamente no nascimento, mas em outros só fica evidente mais tarde. “Muitas vezes tem histórico familiar. Não quer dizer que, se o pai tem, o filho vai ter, mas em geral o paciente lembra que o pai, um tio ou algum familiar tem a deformidade.”
A única correção efetiva é cirúrgica: implantam-se próteses metálicas moldadas por trás do esterno para empurrá-lo para a frente. Antes do desenvolvimento do implante nacional, utilizava-se uma opção importada feita de aço inox com extremidades serrilhadas e dois estabilizadores para fixação — só que nem sempre os estabilizadores eram efetivos e as barras podiam se deslocar e comprimir estruturas mediastinais, como o coração ou grandes vasos. “Esse deslocamento é um perigo.”
Vantagens da prótese nacional
O implante brasileiro é feito de titânio, um elemento química e biologicamente mais compatível com o corpo humano — o que reduz a ocorrência de reações alérgicas. Além disso, as barras têm as extremidades lisas e os estabilizadores têm posicionamento oblíquo e parafusos de pressão para fixação. Isso rendeu uma patente. “Juntei boas ideias com soluções já validadas para criar uma melhor, que garantisse mais segurança ao procedimento”, conta Tedde.
No projeto inicial, 30 indivíduos com a condição foram operados sem intercorrências. Como ainda havia material a ser desenvolvido, em seguida, outros 20 pacientes foram tratados com a técnica. “Sou um médico assistencial que detectou um problema clínico que necessitava reparo”, diz Tedde. “Minha tendência é identificar situações que não estão ideais e buscar soluções. E essa é uma doença órfã: como não há milhões de pacientes para tratar, corre o risco de não haver interesse em solucionar.”
A correção da má-formação pode ser feita em pacientes de diferentes idades. O cirurgião sul-coreano Hyung-Joo Park, um dos maiores especialistas do mundo no procedimento, já tratou indivíduos de 3 a 55 anos de idade. “É um espectro bem largo”, diz Tedde, que já operou pacientes de 9 a 42 anos. “A maior parte dos atendidos, porém, tem entre 12 e 17 anos.”
Durante o processo, há a modelagem das cartilagens, não do osso. As articulações do esterno fecham à medida que o indivíduo cresce e o canal está completamente fechado por volta dos 35 anos. “Depois disso, o osso praticamente não muda de forma, mas as cartilagens sim. Por isso, em pacientes mais velhos, a expectativa com relação ao resultado anatômico deve ser menor.”
As correções são feitas por videotoracoscopia, uma técnica minimamente invasiva, e a incisão, que antigamente era frontal, passou a ser medial e, agora, é lateral. Com o uso dos implantes nacionais, foi possível, ainda, reduzir o tempo de internação após o procedimento. Entre os 30 primeiros pacientes do projeto, esse período caiu de sete para cinco dias. Já para os 20 seguintes, o tempo no hospital limitou-se a quatro dias.
Três anos após a implantação da prótese nos pacientes, ela é retirada. “Se o indivíduo ficar com uma barra no tórax e tiver uma parada cardíaca, por exemplo, fica difícil massagear. Então, ela fica para cumprir a função e depois é removida.” Todos os pacientes tratados por Tedde durante a pesquisa já tiraram a barra.
Segundo o especialista, não houve recidivas em pacientes tratados com o método. “Acreditamos que a condição não volte e a literatura indica isso. Após a retirada da barra, pode haver um pequeno afundamento, de pouco menos de um centímetro, mas é mais uma acomodação que uma recidiva.”
Tedde ressalta que a forma como a cirurgia é conduzida também foi alterada. Antes, o implante era inserido da direita para a esquerda — com risco elevado de atingir o coração durante o processo: há mais de 26 lesões cardíacas descritas na literatura médica. “Passei a fazer da esquerda para a direita. Assim, tenho visão total do coração quando passo a barra — o que dá mais segurança ao procedimento. Fiz dessa forma em 28 pacientes. Agora, além disso, usamos um levantador para elevar o esterno.”
Pesquisa totalmente nacional
Diferentemente de estudos que abordam doenças como câncer, diabetes ou cardiopatias, por exemplo, toda a pesquisa para o desenvolvimento da prótese foi feita no Brasil. “Esses outros nichos envolvem custos enormes. Pesquisas nesses segmentos em geral são estrangeiras e apenas recrutam pacientes no Brasil”, compara Tedde.
O cirurgião destaca que o projeto concluiu o ciclo completo de pesquisa. “Saímos do problema clínico, passamos pela parte científica e chegamos à parte assistencial com o produto brasileiro. É o ciclo completo do que deve ser a pesquisa”, avalia. “Agora, o dispositivo nacional concorre com as próteses importadas. Isso dá muito orgulho.”
Um dos parceiros mais recentes do projeto é o Hospital Sabará, em São Paulo, o maior hospital de cirurgia pediátrica do país. “Eles não tratavam essa condição, mas abriram um ambulatório lá. A cirurgia agora vai fazer parte do dia a dia dos pediatras.” Segundo o especialista, havia muito receio desses profissionais em relação à cirurgia anterior porque ela era muito complicada. “Não é que acabaram os riscos, mas o procedimento ficou muito mais seguro e o resultado agora é mais efetivo do que antes.”
Tedde conta que a divulgação da novidade ainda é restrita a médicos que estejam muito envolvidos com esse tipo de procedimento. “Quem não conhece o dispositivo pode ter a impressão de que é só um novo material e não saber o quanto a cirurgia evoluiu. Por isso, a divulgação é importante: colegas e pacientes precisam saber que o procedimento foi alterado para melhor.”
“Peito de pombo”
Outra condição que pode passar a ser tratada com as próteses é o pectus carinatum (peito carinado, em tradução livre do latim para o português) — conhecido popularmente como “peito de pombo” e com prevalência de 0,6%. Nesse caso, o esterno é projetado para a frente e, idealmente, seu tratamento deve usar um compressor torácico para reverter a deformidade. Se isso não der certo, adota-se a cirurgia. Quando o paciente é criança, entretanto, é comum que não queira usar o compressor.
Tedde quer usar a mesma prótese para corrigir essa outra condição. Enquanto para o peito escavado as barras são colocadas por baixo do esterno para empurrá-lo para a frente, no peito carinado será adicionado ainda um implante por cima. Esse método é conhecido como sanduíche, já que usa duas barras por baixo do esterno e uma por cima para fazer a compressão.
O primeiro caso já foi operado com a técnica. “Até onde é do nosso conhecimento, nunca antes um caso de pectus carinatum havia sido operado por via minimamente invasiva no Brasil.” Agora, Tedde vai submeter um projeto de estudo para tratar pacientes com a má-formação. “Vamos usar o mesmo material. A indústria já busca modificar a qualificação do dispositivo na Anvisa para que possa ser usado nessa outra condição.”
Para o cirurgião, o material pode até ser apresentado a profissionais de outros países. “Com mais um pouco de maturação, essa prótese poderia ser exportada. A dificuldade pode ser a logística de comercialização e a distribuição. Do ponto de vista de qualidade do produto, no entanto, há total condição.”
Por Agência Fapesp de notícias
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