Saúde e comportamento: efeitos e complicações do uso de cocaína e crack
A cocaína, um potente estimulante natural, causa euforia e graves danos cardiovasculares, neurológicos e renais, podendo levar à dependência e intoxicação fatal. Uso crônico agrava os riscos.
Por Dr. Pedro Pinheiro (MD Saúde)
Imagem: divulgação internet
O que é a cocaína?
A cocaína, cujo nome químico é benzoilmetilecgonina, é um alcaloide extraído das folhas da Erythroxylum coca, um arbusto comum nas regiões andinas da América do Sul. Os três países que mais produzem cocaína no mundo são, em ordem decrescente, Colômbia, Peru e Bolívia.
A cocaína é considerada o estimulante mais potente de origem natural, destacando-se por seus efeitos no sistema nervoso central e no sistema cardiovascular.
As folhas de coca são usadas pelos povos indígenas há mais de 2000 anos, principalmente mastigadas ou em forma de chá, para alívio da fadiga. Embora o consumo das folhas de coca tenha efeitos leves devido à baixa concentração de benzoilmetilecgonina (menor que 1%), sua utilização na forma isolada da cocaína aumenta significativamente sua potência e os riscos associados.
O isolamento da cocaína foi realizado pela primeira vez em 1860, levando ao seu uso como anestésico local, especialmente em cirurgias oftalmológicas e de vias aéreas superiores, devido à sua capacidade de reduzir o sangramento por vasoconstrição.
Durante o final do século XIX, a substância tornou-se amplamente utilizada, sendo incorporada em bebidas como a Coca-Cola (até 1903) e em medicamentos, antes de ser controlada legalmente nos EUA em 1914. Atualmente, mais de 23 milhões de pessoas consomem cocaína em todo o mundo, representando cerca de 0,5% da população global entre 15 e 64 anos.
Vias de administração e tipos
A cocaína pode ser administrada por vias oral, intranasal, intravenosa ou inalatória (fumo). Cada via apresenta diferenças importantes na absorção, início e duração dos efeitos:
- Via intravenosa e inalatória (fumo): proporcionam início rápido dos efeitos (menos de 1 minuto), pico em 1 a 5 minutos e duração de 30 a 60 minutos.
- Via nasal: início em 1 a 5 minutos, pico em 20 a 30 minutos e duração de 1 a 2 horas.
- Via oral: início mais lento, em 30 a 60 minutos, com pico em 60 a 90 minutos.
Além disso, a cocaína pode ser combinada com outras substâncias, como álcool, formando o cocaetileno, um composto de ação mais prolongada e efeitos cardiotóxicos potencializados.
A cocaína é uma substância rapidamente absorvida quando em contato com qualquer mucosa, seja nasal, oral, gastrointestinal e até retal. Quando fumada, a droga é absorvida pelos alvéolos do pulmão, caindo rapidamente na circulação sanguínea.
A cocaína exerce um grande efeito vasoconstritor quando em contato com as mucosas, fazendo com que o fluxo sanguíneo destas regiões fique reduzido. Deste modo, a absorção da droga para a circulação sanguínea é mais lenta e duradoura. A via intravenosa e inalatória (através do fumo) não dependem de mucosa para atingir a circulação sanguínea, sendo, assim, as vias de mais rápido efeito.
Crack
O crack é produzido misturando cocaína com bicarbonato de sódio e água, formando uma pedra que é aquecida para liberação do fumo. Este método resulta em rápida absorção pulmonar e efeitos intensos, mas de curta duração, sendo associado a complicações respiratórias graves, como “pulmão do crack”.
O crack só pode ser usado para o fumo uma vez que é pouco solúvel para ser dissolvido para via intravenosa.
O consumo do crack suplantou o uso injetável da cocaína por apresentar efeitos semelhantes e não necessitar de seringa nem da punção de uma veia. É muito mais fácil consumir o crack do que injetar cocaína.
Efeitos da cocaína
Uma vez na corrente sanguínea, a cocaína atinge rapidamente o cérebro, bloqueando a recaptação de neurotransmissores como dopamina, serotonina e noradrenalina. Isso resulta em euforia, aumento da sociabilidade e energia, redução do cansaço e do apetite. A ação sobre o sistema dopaminérgico explica seu alto potencial de dependência.
Imediatamente após o início dos efeitos, o usuário, além dos efeitos psicogênicos, também apresenta elevação da pressão arterial, aceleração dos batimentos cardíacos, pupilas dilatadas e aumento da temperatura corporal.
O efeito da euforia e prazer ocorrem pela ação da cocaína em inibir a desativação de neurotransmissores relacionados ao prazer, mantendo-os em grande quantidade e ativos no sistema nervoso central por prolongados períodos. Assim que termina seu efeito, o sistema nervoso encontra-se depletado de neurotransmissores excitatórios, sendo este fato o responsável pela depressão e falta de ânimo que vem a seguir.
Conforme o uso torna-se repetitivo e as doses vão se tornando cada vez maiores, surgem os efeitos indesejados da droga que incluem agressividade, ataques de pânico, paranoia, alucinações, insônia e falta de apetite.
Em resumo, a cocaína age principalmente por:
- Bloqueio da recaptação de neurotransmissores (dopamina, norepinefrina e serotonina), resultando em euforia, aumento da atenção e pressão arterial elevada.
- Bloqueio de canais de sódio, causando anestesia local e, em doses altas, toxicidade cardíaca.
- Estimulação de aminoácidos excitatórios (glutamato e aspartato), que intensificam seus efeitos neurológicos.
Complicações
O uso crônico de cocaína pode levar à deterioração de diversas funções orgânicas, incluindo o desenvolvimento de cardiomiopatia e danos cerebrais. As complicações mais comuns serão descritas a seguir.
Complicações cardiovasculares da cocaína
A cocaína causa aumento da pressão arterial, da frequência cardíaca e do consumo de oxigênio do coração, além de ser um vasoconstritor, diminuindo o aporte de sangue pelas artérias coronárias.
Esses efeitos ocorrem agudamente após o seu consumo e podem desencadear arritmias e isquemia, levando à dor no peito (angina), ao infarto do miocárdio e até à morte súbita. Não por acaso, a principal causa de infartos em jovens é o consumo de cocaína.
O uso de cocaína também favorece o infarto por estar associado a um maior depósito de placas de colesterol nas artérias. Portanto, o consumo de cocaína leva à lesão no coração tanto de forma aguda, com isquemia ocorrendo logo após o seu consumo, como de forma lenta e gradual por estimular a obstrução das coronárias.
A insuficiência cardíaca é outra complicação do uso crônico de cocaína.
Complicações neurológicas da cocaína
Além dos sintomas neurológicos já descritos, o consumo de cocaína também pode causar crise convulsiva, agitação, hemorragia intracraniana, AVC e cefaleia crônica (dor de cabeça).
O uso contínuo de cocaína pode levar a síndromes neurológicas com movimentos involuntários dos membros, tremores e comportamentos estereotipados, com repetições de movimentos.
O uso crônico de cocaína está associado a taxas mais altas de suicídio.
Complicações respiratórias da cocaína
o consumo intranasal de cocaína leva a rinite crônica, sinusite, perfuração do septo nasal, úlceras de orofaringe e necrose da mucosa nasal.
A cocaína, quando consumida por fumo (crack), pode causar queimaduras das vias aéreas superiores, além de lesões pulmonares como asma, pneumotórax, embolia pulmonar e hemorragia pulmonar.
Pulmão do crack
O pulmão do crack é uma síndrome que ocorre devido à hemorragia nos alvéolos pulmonares causada pelo fumo de crack. Os pacientes se apresentam com tosse, muitas vezes com escarro sanguinolento, falta de ar, febre e, às vezes, insuficiência respiratória, necessitando intubação e ventilação mecânica.
Complicações gastrointestinais da cocaína
Usuários de cocaína apresentam uma taxa elevada de úlceras gástricas e perfurações. A cocaína também é causa de infarto intestinal e colite isquêmica. Também são mais comuns a isquemia do pâncreas e do baço.
Botulismo
O uso de cocaína por via nasal tem sido descrito como uma potencial causa de botulismo.
Efeitos renais
Os efeitos renais decorrem principalmente de seus impactos hemodinâmicos, metabólicos e musculares.
- Vasoconstrição renal: a cocaína provoca um aumento na liberação de catecolaminas e estimula os receptores adrenérgicos, causando vasoconstrição renal. Isso pode reduzir o fluxo sanguíneo nos rins, levando à isquemia renal, infarto renal e, em casos graves, à insuficiência renal aguda.
- Rabdomiólise: a cocaína aumenta o risco de rabdomiólise, uma condição caracterizada pela destruição de fibras musculares, com liberação de mioglobina na circulação. A mioglobina é nefrotóxica e pode causar obstrução tubular e insuficiência renal aguda, especialmente em situações de desidratação ou acidose metabólica.
- Hipertensão e toxicidade crônica: o uso crônico de cocaína pode agravar a hipertensão, contribuindo para nefroesclerose hipertensiva e perda progressiva da função renal.
Gestantes
Em gestantes, o uso crônico de cocaína está associado a complicações no desenvolvimento fetal e descolamento prematuro da placenta.
Outras complicações
A cocaína adulterada com levamisol pode causar agranulocitose e necrose cutânea. Fentanil, frequentemente misturado à cocaína, eleva o risco de intoxicação por opioides. A exposição passiva, particularmente em crianças, pode causar intoxicação acidental com sintomas respiratórios e neurológicos.
Exposição passiva
A exposição passiva à cocaína, especialmente em crianças, ocorre quando elas entram em contato com o ambiente ou substâncias contaminadas por cocaína devido ao uso por adultos em sua proximidade. Ela pode causar intoxicação acidental com sintomas respiratórios e neurológicos.
Essa exposição pode se dar por diferentes vias, sendo mais frequentemente associada à inalação de partículas suspensas no ar, contato da pele com a droga ou ingestão acidental (a criança pode tocar na droga e depois levar a mão à boca).
Diagnóstico da intoxicação aguda pela cocaína
O diagnóstico da intoxicação por cocaína baseia-se na história clínica, avaliação detalhada do ambiente de exposição e exames laboratoriais específicos.
A detecção de benzoilecgonina (BE), principal metabólito da cocaína, na urina é o exame laboratorial mais utilizado, com capacidade de identificar a substância por até 72 horas após a exposição aguda, ou mais em usuários crônicos. Em casos de exposição prolongada, testes capilares podem detectar a droga por semanas ou meses.
Exames adicionais, como avaliação de sangue, saliva e mecônio (em recém-nascidos), podem ser úteis em situações específicas. Complementarmente, a função renal e hepática deve ser avaliada, assim como a realização de monitoramento cardíaco, incluindo eletrocardiograma (ECG), para detecção de arritmias ou isquemia. Em casos de ingestão de pacotes de cocaína, exames de imagem, como radiografias ou tomografia computadorizada, são essenciais para diagnóstico.
Tratamento da intoxicação aguda por cocaína
O manejo varia conforme a gravidade da intoxicação. Em casos leves a moderados, o controle da agitação psicomotora é realizado com benzodiazepínicos, como diazepam ou lorazepam, administrados em doses tituladas por via intravenosa até o controle dos sintomas.
A hipertermia deve ser tratada com resfriamento físico rápido, utilizando compressas frias, ventiladores ou imersão em água fria, com monitoramento contínuo da temperatura corporal. Em situações de exposição por inalação, a irrigação nasal com solução salina isotônica pode ser realizada.
As complicações cardiovasculares, como hipertensão e vasoconstrição, são controladas com vasodilatadores, como nitroglicerina ou nitroprussiato. O uso de beta-bloqueadores é contraindicado devido ao risco de exacerbação da vasoconstrição causada pelo bloqueio dos receptores beta e ativação não-oposta dos receptores alfa-adrenérgicos. Arritmias devem ser tratadas conforme sua natureza, sendo o bicarbonato de sódio indicado em casos de alargamento do QRS no eletrocardiograma.
Nos casos graves, como ingestão de pacotes de cocaína, o manejo envolve detecção por exames de imagem, desintoxicação gastrointestinal com lavagem gástrica ou laxantes, e, quando necessário, cirurgia emergencial para remoção dos pacotes, especialmente em situações de ruptura ou obstrução intestinal.
Complicações neurológicas, como convulsões, são tratadas inicialmente com benzodiazepínicos e, se necessário, anticonvulsivantes como fenitoína. A hidratação intravenosa com soluções isotônicas é essencial para prevenir complicações renais e metabólicas. Pacientes graves devem ser monitorados em unidades de terapia intensiva (UTI) até estabilização clínica.
Após resolução completa dos sintomas, pacientes podem ser liberados após 6 a 8 horas de observação, com orientações para acompanhamento ambulatorial. Casos graves ou com complicações significativas requerem internação para manejo intensivo e especializado.
Referências
- Cocaine: Acute intoxication – UpToDate.
- Clinical manifestations, diagnosis, and management of the cardiovascular complications of cocaine use – UpToDate.
- Cocaine use disorder: Epidemiology, clinical features, and diagnosis – UpToDate.
Autor(es)
Médico graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com títulos de especialista em Medicina Interna e Nefrologia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN), Universidade do Porto e pelo Colégio de Especialidade de Nefrologia de Portugal.
Fonte: mdsaude.com
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